quinta-feira, 31 de outubro de 2013

TRILHA? SÓ DE CROCHÊ

Nunca fui chegado a aventuras. Mesmo quando jovem, jamais me passou pela cabeça saltar de asa delta, escalar montanhas ou andar de patins. O máximo que me permiti foi jogar futebol. Embora não seja considerado um esporte radical, o futebol foi, ao menos pra mim, atividade de alto risco. No início, me escalavam na ponta esquerda. Depois, me colocaram sob as traves. Não me dei bem em nenhuma das duas posições. Destro, meus cruzamentos eram sempre para o lado esquerdo, na direção da torcida. Jamais enviei – como esperavam o técnico e o centroavante de meu time – a bola para o meio da área adversária. No gol, poderia ter me dado bem, mas a miopia me atrapalhou um pouco. Desisti do esporte bretão, quando descobri que era a alegria da torcida. Da torcida adversária, porque a minha só me dirigia impropérios.

Dizem que os anos nos tornam mais prudentes. Tenho pra mim que a coisa não é bem assim. No meu caso, é o medo que fala mais alto. Há dias, estive no Parque Nacional de Itatiaia. Fui até aonde o carro me levou. Minto. Cheguei a descer, a pé, uns cento e poucos metros de escada, para ver uma cascata muito da mixuruca. Não devia ter ido. Se tivesse idealizado a dita cuja, eu certamente teria dela melhor impressão. E não teria dado tanta alegria às muriçocas. Voltei empolado. Minha mãe sempre me disse que tenho sangue doce. Não sei, nunca provei. Se não posso ver sangue, desmaio, que dirá degustá-lo?

O fato é que fui vítima da má sinalização. Por isso, embarquei na aventura. Só na volta, ao ler a placa advertindo sobre o que a trilha nos oferecia, percebi o risco que acabara de correr. Como alguém, no perfeito gozo de suas faculdades mentais, pode cair num canto do vigário desses? Os alertas são estarrecedores: não temos salva-vidas; pra cair, basta estar em pé; acidentes fatais são comuns etc. Só faltou dizer: “Muitos vão, poucos voltam”. Os que vi voltar (graças a Deus, fui um deles) se gabavam (menos eu) das picadas dos insetos, da falta de ar que escadas íngremes provocam, da topada na raiz da árvore centenária, remanescente da Mata Atlântica, do tornozelo, joelhos e coluna arruinados. O mais interessante de tudo é que a maioria da turma se mostrava devidamente recompensada pelo esforço. 

Meu espanto com os ecoturistas é crescente. A única certeza que me dão é a de que jamais serei um deles. Eles não perdem nada com isso. Nem eu. (abril de 2013)


MINHA QUERIDA:

A mais linda, meu amor, minha filha. 
Obrigado, guria: parabéns, Maria.
OAB. Passaporte garantido. 

Na casa de Noca, ninguém degenera. Coisa de Sabiá. 

O PRÓXIMO PASSO

Aécio, o eterno guri, quer tornar o BOLSA FAMíLIA definitivo. Em breve, posará para jornais e revistas com macacão de piloto de Fórmula 1, com logotipos da Petrobrás, Banco do Brasil etc.

VONTADE DE PEGAR O TREM

Essa coisa de cotas, sejamos francos, já torrou a paciência de quem tem dois neurônios. Não precisa ser muito articulado para saber o óbvio: em vez de criar cotas nas universidades para negros, pardos, índios, mancos da perna direita, mancos da perna esquerda, gente com nove dedos (vai que é tua, Lula) etc., é preciso dar educação básica de qualidade para todos que estejam a fim de estudar. Mas isso dá trabalho. E trabalho não é nosso forte. Nunca foi.

Um deputado (tinha que ser do PT, claro) apresentou projeto que garante um número mínimo de vagas nas casas legislativas para candidatos negros. A estrovenga já foi aprovada por uma comissão dita especial da Câmara dos Deputados. Palhaçada. Este país perdeu de vez o senso de ridículo. Já passou da hora de se mandar.  Cadê o trem?


terça-feira, 29 de outubro de 2013

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

LÁ VEM A MAFALDA

O Velho Marinheiro estava que estava: insuportável, inquieto que só, pior que mulher da vida de olho no relógio, porque o rebento tem hora certa de mamar. Ou alguém acha que filho da p... não mama? É o que mais faz. Brasília prova que não minto. Aquele seu mutismo – do nosso Lobo do Mar – era mau sinal. Escarafunchava o dedão do pé com a fúria dos piores ventos em mar aberto. Ira à vista. 

-- Que foi? – quis saber Mafalda.

-- Foi nada, mulher.

-- Foi sim. Essa cara sua eu conheço. Há quarenta anos. Homem: diga. 

-- Então, lhe digo: Romualdo Bastos é um lixo. E a Deolinda, mulher à toa. O corpo do marido nem bem esfriou... E ela já está a exibir o corpanzil para aquele sujeito. Só faltou babar nas palavras cruzadas.

-- Quem? Com quem Deolinda se engraçou?

-- Surda: Romualdo Bastos. O das palavras cruzadas.

-- Pensei que o assanhamento de Deolinda fosse para Ananias.

-- Esse é mais que um coitado: é um jornalista injustiçado. Vou ajudar esse moço sair da depressão. É uma vítima da burrice que solapa Vila Invernada.

-- Tá com ciúmes de Deolinda?

-- Sabia. Lá vem você, lá vem a Mafalda com a conversa de sempre. Ciúme de quê? Nem ligo para aquelas nádegas fabulosas.



LEIA TAMBÉM AS NÁDEGAS DA DEOLINDA

http://orlandosilveira1956.blogspot.com.br/2013/09/as-nadegas-da-deolinda.html#comment-form

sábado, 26 de outubro de 2013

O VERÃO ESTA AÍ

Depois de certa idade, “bisa” Nilza se tornou irredutível: ia à praia, mas jamais colocava maiô. E explicava: “Não vou mostrar minhas carnes para ninguém”. Cá entre nós – e com
Foto: johninbrazil.org
o mais absoluto respeito pela minha avó querida –, era uma atitude sábia. Sua arquitetura deixava, sim, a desejar. Era de chocar o menos exigente dos pedreiros. Muito embora considere bobagem a mulher deixar de curtir o sol e o mar por conta de uns quilinhos a mais ou por causa de varizes, celulite e estrias. É sabido que homens muito “exigentes”, em geral, usam sua exigência para ocultar preferências outras. Quem gosta, gosta. Ponto. Melhor uma choupana que dormir ao relento.

Por que isso? Porque o calor chegou, o verão se aproxima, é tempo de usar menos panos. Os decotes ficam mais generosos; as saias, mais curtas. Os biquínis, cada vez menores, continuam mostrando tudo, menos o fundamental, como diria Roberto Campos.

A desgraça é que, salvo engano, o verão instala na alma nas mulheres um dilema medonho: mostro ou não mostro minhas “carnes”? A bambina vai às ruas com vestidinho pra lá de curto e decotado. Sabe que vai chamar a atenção. E é isso mesmo que ela quer: chamar a atenção pra aquele corpão violão. Nem sempre é assim, mas deixa para lá. As maduras dizem que não, mas seguem a regra. Basta observar. Quem não gosta de se exibir?

Ocorre que, ante o primeiro olhar guloso, a bambina se retrai. (As mais velhas rezam um Pai Nosso, fingido que só.) Cruza os braços para esconder o decote, puxa o vestido para baixo a fim de ocultar o par de coxas, como se isso fosse possível. Cobre as pernas, exibe os peitos. O cobertor é curto. Quando senta, para tomar um chope ou suco, comprime os joelhos com tal disposição que, frequentemente, no fim da temporada, é obrigada a buscar os préstimos de ortopedistas.


Então, fiquemos assim: ou bem usam burca, ou deem aos velhos a única alegria que lhes resta: olhar e babar. (2012)

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A ÉTICA DO CRUZ-CREDO (CENA XI)

-- Consultório do DR. João Matos, boa tarde.

-- Boa tarde. Gostaria de marcar uma consulta pra minha filha.

-- Só temos pra janeiro.

-- Três meses! Pior que o SUS.

-- Qual seu convênio?

-- Nenhum. A consulta é particular.

-- Ah, bom! Pode vir amanhã. Que hora a senhora prefere? 



quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O TRATO

Ficamos assim: tarde e noite de domingo são “sagradas”. Então, você não me visita, e eu não vou à sua casa. Certo? 

AQUELA NÃO ERA MINHA MÃE

Ainda menino, guri pobre, ficava sempre apreensivo às vésperas de casamento de parentes ou conhecidos. Não via a hora, claro, de comer salgados, doces e tudo mais que me fosse servido. Também gostava de correr feito besta de um lado para outro do salão, com meus primos, até vomitar na roupinha nova, comprada a prazo. No dia seguinte, o puxão de orelha era certo. Quando não apanhava ali mesmo: no salão, isso quando a festa não era no quintal da casa do pai da noiva - o que era mais frequente, em função de nossas relações sociais.

Mas o que me deixava apreensivo não era o castigo físico, que, a bem da verdade, pouco doía. Era a certeza de que mamãe iria à cabeleireira, logo pela manhã. Que depois voltaria com uns rolos imensos na cabeça coberta por um pano qualquer. O pior viria à tarde, quase na hora da cerimônia. Quando ela entrava em casa, com aquele capacete construído com frascos e mais frascos de laquê, era sempre um baque para mim. Meu pai não se abalava. Às vezes, chegava a lhe dizer: “Está bonita”. 

Aquela mulher de capacete não era minha mãe. Minha mãe era a que me buscava de cabelos lambidos e vestido ordinário, na porta da escola. Esta eu amava. Desta sinto saudades.


O PORTUGUÊS BEIJOU A LONA, SEM LEVAR UM MÍSERO SOCO

Minha sogra era calada, mais observava que falava. Raramente, dava palpites sobre assuntos que não dominava, ainda mais se da conversa participassem estranhos. Preferia coar um café e preparar uns croquetes impagáveis. Meu sogro era o exato oposto. Adorava uma polêmica. Desconhecimento do assunto jamais o impediu de expor suas opiniões definitivas sobre tudo. Falava pelos cotovelos. Não perdia a oportunidade de maldizer o comunismo e Adhemar de Barros, só para enaltecer Jânio Quadros. A experiência me ensinou que, ao lhe dizer “bom-dia”, era prudente puxar uma cadeira. A prosa sempre ia longe.

Domingo à tarde, fui namorar. Sabiá estava linda demais. Logo em seguida, minha sogra veio até o portão, me cumprimentou, perguntou se não queria um café e uns bolinhos, virou-se para a filha e disparou:

-- Teu pai não se emenda. Há duas horas ele não para de falar, só ele fala. Do português não se ouve um pio. Que mania de falar tanto!

O português em questão era português mesmo. Chegara há pouco da Terrinha e fora até a casa de meus sogros para conhecer o filho de minha cunhada, como convém a todo tio-avô amoroso. Segundo relato de minha sogra, o português até que resistiu bem à mudança de fuso horário. Mas, como veríamos logo a seguir, sucumbiu ante a falação de meu sogro.

E por falar em sogro, lá veio ele até o portão. Minha sogra não se aguentou:

-- Você deixou o homem sozinho na sala? Que falta de educação!

-- Ele dormiu. O que você quer que eu faça? Até que tentei acordá-lo. Continuei falando. Qual o quê! O português tem sono pesado. O pior é que vai acordar com a camisa babada. 

Aceitei o convite de minha sogra para saborear os croquetes. E puxei uma cadeira. A “vítima” agora era eu. Tenho para mim que o português já estava acordado, mas lhe faltava coragem para dizer “até logo”. A chance de meu sogro engatar nova conversa não era desprezível. O português era luso. Não era leso. (janeiro de 2013)


BOLA CANTADA

Filhos e filhas, noras e genros, netos e netas, todos queriam saber de seu João, 8.4:

-- E o que o médico lhe disse, afinal?

-- O que eu já sabia: que da cintura pra cima, tirando a catarata, está tudo bem.


TRAUMA NÃO SE DISCUTE

Foto: www.luzdaserra.com.br
-- Doutor, eu relutei muito para vir até aqui. Sou sincera: sempre achei essa coisa de análise  bobagem. Coisa de quem gasta uma fortuna para não resolver nada. Sou pragmática. Quero resultados. E rápidos. Neste mundo cada vez mais competitivo, não se pode perder tempo.

-- E por que resolveu vir agora?

-- Porque me dei conta de que, sozinha, infelizmente, já não sei lidar com meu trauma.

-- Estou aqui para ouvi-la, ajudá-la. Fale o que quiser. Sinta-se em casa.

-- Sou bem sucedida profissionalmente. Sou formada, pós-graduada, doutorada, calejada por cursos e mais cursos disso e daquilo. Falo várias línguas. Fluentemente. É difícil encontrar um assunto sobre o qual eu não tenha posições firmes, bem fundamentadas. Passei em vários concursos. Ascendi nos empregos por mérito, apenas e tão somente por mérito. Ganho muito bem, bota bem nisso. É que...

-- Que maravilha! É admirável encontrar uma pessoa como você, com tantas qualidades. Não entendo a razão de trauma, complexo ou algo parecido. 

-- O senhor sabe o que é passar a adolescência, a juventude e a idade madura sem nunca ter sido convidada para fazer um único teste do sofá, sem nunca ter sido chamada de “gostosa” na rua, sem nunca ter recebido um mísero assovio? Se o senhor não sabe, fique sabendo: é uma merda, doutor!  (março de 2013)




PÉ NO SACO

www.republicagourmet.com
Gesto raro de generosidade, pagou duas pizzas, para os afilhados de casamento. Segundo ele, era a melhor pizza da região. E de fato era boa mesmo.

Duas semanas depois, os afilhados resolveram retribuir a gentileza. Era o mínimo a fazer. Compraram duas pizzas no mesmo lugar, na melhor pizzaria da região, segundo ele. Só que, para ele, a pizza já não valia mais nada. Os donos da pizzaria jogaram fora, em duas semanas, uma reputação de vinte anos. É a única dedução possível.


Trinta anos depois, continua a maldizer o que os outros lhe oferecem de graça. 

A pizza do vizinho, para ele, é sempre melhor. 

MAFALDA QUE SE CUIDE

-- Ué, você já leu os jornais? – quis saber Mafalda, espantada com a rapidez com que o velho marinheiro traçara o noticiário do dia, justo ele que costumava perder praticamente a manhã toda lendo e relendo as folhas, recortando e arquivando páginas, fazendo anotações. Uma prática de décadas. Para quê? Ninguém sabe.

-- Os jornais, não: o jornal! Venceu a assinatura dos outros dois. Não renovei. Quando vencer a assinatura do que restou, farei o mesmo. Estou farto de tanta bandalheira – resmungou nosso Lobo do Mar, visivelmente irritado. Os passarinhos morreram, restou apenas o coleirinha. Para forrar sua gaiola, a gazeta do bairro me basta. 

-- Perdeu o interesse pela leitura, meu velho?

-- Pela leitura, não. Perdi o interesse pelo Brasil, este país de frouxos e desavergonhados. O que se lê é só notícia de corrupção. Os safados saem do noticiário apenas quando morrem. E olhe lá! Porque, em geral, deixam herdeiros, que continuam roubando em seu nome. Poucos vão para a cadeia. E os que vão são os miúdos, os bagrinhos. Aqui, a lei tarda e falha, pior que trem de subúrbio. É um desconchavo. Só volto a ler jornais quando os políticos voltarem a fazer Política com “P” maiúsculo.

-- Meu Lobo: não se iluda. Essa gente não se emenda. O que você vai fazer com o tempo livre?

-- Coisas mais úteis, Mafalda?

-- O que, por exemplo?

-- Vou passar o dia tomando umas lapadas, jogando conversa fora. E bolinando minha delícia – concluiu o Velho Marinheiro, dengoso que só. (agosto/2013)


E O VELHO MARINHEIRO FOI AO MÉDICO...

Mafalda não desgrudava os olhos da porta. Os ouvidos arruinados pela idade faziam esforços ingentes para ouvir o telefone que não tocava. Precisava mais do que nunca, com urgência, de notícias dele – do Velho Marinheiro, nosso lobo do mar, seu amor de uma vida inteira, desde o tempo de guria. Rezava, não dizia palavra. Mas o coração aflito berrava: “Volta!”.

A aflição de Mafalda era compreensível. Quem não se afligiria com a ida do ser amado ao médico, ainda mais tendo ele a idade que tem, tendo ele feito o que fez ao longo de uma vida inteira? E o que fez nosso lobo do mar ao longo de uma vida inteira? Trabalhou muito, fumou sem descontinuar, bebeu bons bocados, amou Mafalda como ninguém a amaria. “Meu velho, meu velho” – murmurava a musa do desbravador de mares, enquanto se comprometia com todos os santos que conhecia. Fez promessas impagáveis.

A aflição sem fim chegou ao fim: o Velho Marinheiro entrou na sala com sorriso maroto:

-- Esse médico que Irene me levou quase à força é porcaria feito os outros que conhecemos. Acho até que é cubano.  Já fui logo lhe dizendo: “Escute: nasci com um cigarro entre os dedos, bebo desde que vi o mar, aos oito anos, fiz sexo com muitas mulheres, muito embora Mafalda tenha sido a única que me interessou de fato. É meu amor. O resto foi passatempo, parque de diversão. Não gosto de verdura, não vou parar de fumar, não vou deixar de beber, caminhar só o necessário. E tem mais: de Mafalda não desgrudo. O que o senhor, filho de Hipócrates, pode fazer por mim? Se é nada, diga logo. O estacionamento está pela hora da morte”.

-- E o que ele lhe disse, meu velho birrento? – quis saber Mafalda. .

-- Ele me disse que, seu eu não mudasse, não poderia fazer nada. Ora, se é para não fumar, deixar de beber, andar feito tonto todos os dias, comer mato e beber três litros de água, não preciso de médico. 

-- Você voltou como foi: sem resolução.

-- De mim, cuido eu, Mafalda. Essas dores no peito são gases. Irene, minha neta querida, traga um LUFTAL para seu avô. Que ele vai botar pra fora o que lhe apoquenta. (julho/2013)


NA BATIDA DE DOMINGUINHOS

-- Mafalda, aproveitando que estamos sós, coisa rara, eu quero lhe fazer uma pergunta: você se lembra daquela música nossa? – quis saber o Velho Marinheiro, nosso Lobo do Mar, caçador incansável de bichos de pés inexistentes.

-- Qual? Tivemos tantas, ao longo dos anos – tentou dissimular a amada do desbravador dos sete mares.

-- Da mais quente, não se faça de desmemoriada. Besta você não é. Conhece minhas melhores intenções.

-- Lembro, sim. Mas não digo. Aquilo já se foi. A gente era jovem. Os tempos são outros. Você não é mais o mesmo, Eu também não sou. Para que falar dessas coisas que não voltam mais? Se uma neta da gente ouve... Vai dizer de mim o quê?

-- “De mim o quê” é vício de linguagem. Não me lembro do nome do vício, mas é vício. Mas não é disso que quero falar. Estou ligando para a opinião de filhos, netos e vizinhos? Você nunca mais cantou aquele refrão.

-- Nem vou cantar. Tenha compostura. Deixa a safadeza pra lá. Somos velhos. Irene, nossa neta, tem ouvido de tuberculoso, com o perdão da má palavra.

-- Então, canto eu.

-- Não faça isso.

-- Faço. Para matar a saudade.

E o Velho Marinheiro, então, passou a cantarolar – em alto e bom som –, tocando uma sanfona  imaginária, tão imaginária quanto seu bicho de pé:


-- Isso aqui tá muito bom, isso aqui tá bom demais.  (julho 2013)

TÉDIO

Não sei quem me aborrece mais: se os novos ricos ou se os velhos pobres.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

SÍLVIO SANTOS: TARADO

Calma, gente: não acho isso, não. Quem achava isso era avó do Dias, amigo do peito do pai, morta 500 anos atrás. A velha senhora morava no Rio com a filha mais velha. A TV engatinhava. E o SS já era “coisa nossa, aos domingos”. Como o macarrão, a galinha e o pêssego em caldas.

A velha senhora, como toda velha senhora, ia aonde lhe levavam. A filha, às vezes, vinha a São Paulo ver os irmãos. E trazia a velha senhora, evidentemente. E aí começava o problema. Aqui, como lá, aos domingos, o ritual se repetia: macarrão, frango, tubaína, pêssego em caldas e “SS vem aí”...

A velha senhora não se continha. E alertava a filha:

-- Estique a saia, menina. O tarado não tira os olhos de suas pernas. A gente sai do Rio, vem pra São Paulo, mas ele não desgruda de suas partes baixas. Vagabundo. Do Baú não compro nada.  

AMADA AMANTE

Era, sim, um amante a moda antiga, embora não tivesse o hábito de dar flores a seu ninguém. Colocou o vinil na vitrola. E deixou o danado rodando seus lamentos. Entornou parati, ficou emocionado que só. Aquele amor de décadas aflorou. Era a hora, era o dia, os filhos saíram para passear... Estavam sozinhos.

Mas ela tinha manicure com hora marcada.

Paciência. Fica para a próxima.



O CONTADOR DE CARNEIROS



by almafreneticablogspot.com
Era uma vez um homem que, desde menino, acostumara-se a ver a vida pela janela. Esperava sempre as condições ideais para fazer aquilo que sonhava fazer – a maneira mais objetiva de nunca fazer nada.

Como o tempo não para, ele também ficou velho, como ficam velhos todos, ou quase todos, os meninos.

Ainda lhe restam forças para fechar a janela, tomar o elevador e, finalmente, caminhar. Mas de que lhe vale este fiapo de vigor, se ele não aprendeu a atravessar a rua?


Melhor cerrar a cortina. E contar carneiros. Como sempre fez.

LÍNGUA SOLTA, CORAÇÃO AFLITO

-- Eu sei, eu sei. Aliás, todo mundo sabe que você não mediu esforços, lutou contra todas as adversidades, fez tudo que podia – e um pouco mais –, foi incansável etc. e tal. Mas, antes de convencer os outros de tudo isso, você precisa se convencer de que tudo isso é mesmo verdade. E pelo visto está difícil.


SÓ DUAS GOTINHAS, DOUTOR

A música já nos ensinou que perdão foi feito pra gente pedir. Todo mundo também sabe que é melhor pedir que roubar, muito embora esta pareça ser uma prática mais lucrativa que aquela. Ao menos entre nós. Mas o exagero, sempre ele, a falta de critérios, sempre ela, costuma pôr tudo a perder. Como levar a sério um cidadão que vive pedindo desculpas pelos mesmos erros de sempre? Das duas, uma: ou o tipo é leso, ou despudorado.

Tenho pra mim que quem muito pede nada leva, além de torrar a paciência alheia. Ou seja: chora muito, mama pouco. Conheci um sujeito assim, radialista. Não sei se está vivo ainda. Era um pidão profissional. De nada adiantava lhe dizer:

- Infelizmente, não tenho como ajudá-lo.

A resposta vinha rápida, feito flecha, junto com a lista de pedidos:

- Você é que pensa. Sempre é possível ajudar um amigo.

Era invencível. Certa feita – eu não presenciei a cena, mas não tenho razões para duvidar de que não tenha ocorrido –, ele abordou o secretário de Estado que acabara de dar uma entrevista à rádio em que trabalhava. Pediu de tudo ao homem – de emprego para a filha a casa popular para a ex-mulher. Ante as sucessivas negativas, partiu para o penúltimo ataque:

- Tudo bem, doutor. Então, me arrume um cigarro.

- Eu não fumo, respondeu sua Excelência.

- E o que o senhor tem no bolso da camisa?

- Colírio.

- Preciso de duas gotas. Pode ser?





AINDA BEM QUE A PINGA ERA BOA



O pai nunca foi de beber. Nem de fumar. Quando muito – e quando podia – tomava um gole de caipirinha na praia. Sempre foi comedido, comedido demais para meu padrão errante. Sua mãe, minha bisa, não dizia, mas insinuava que estávamos ante um iluminado, quase santo. Mãe que se emenda não é mãe. Bisa era mãe.

A mãe – a minha, não a do pai – revirava o nariz: “Minha sogra não tem vergonha de pecar”.
Tio Antônio era o exato oposto do pai. Bebia e fumava sem descontinuar. Gostava dele. Afinal, fumar e beber tanto, como ele fumava e bebia, era coisa para poucos. Tio Antônio morreu cedo. De ataque cardíaco. Dizem que tinha coração grande, que fora mordido pelo barbeiro (o inseto, claro) na infância. Até hoje o pai duvida da versão oficial. Ninguém lhe tira da cabeça que o fumo e a uca lhe cobraram a conta.

O fato é que o pai passou a vida intrigado com uma das manias de tio Antônio:

-- Como pode alguém virar um copo de cachaça, fazer careta medonha, se retorcer por inteiro e ainda dizer que “pinga boa”? Se a pinga fosse ruim, que cara ele faria?


A pergunta continua sem resposta. Tio Antônio se foi. E do inseto que o mordeu não se tem notícia. 

SALVADORES DA PÁTRIA

O amor fácil e abundante pela humanidade, uma espécie de romantismo repaginado, é quase sempre filho da idiotia. É certo que soluções fáceis não resolvem problemas complexos. Muita gente, no entanto, não sabe disso. Outro tanto sabe, mas se faz de tolo, para ficar bem na fita com as patrulhas.

Há gente, por exemplo, que está convencida (ou finge estar – o que é mais crível) de que dá para alimentar o mundo, com produtos variados e baratos, na base da enxada e do arado.

Há quem jure que o problema do transporte público, nas metrópoles, será resolvido com a implantação de quilômetros e mais quilômetros de ciclovias. Logo, logo, vão criar o MSB – Movimento dos Sem Bicicleta.

Não tenho nada contra a agricultura familiar, nada tenho contra bicicletas, embora prefira, por razão de segurança (minha), triciclos. Daí a crer que uma e outra salvarão o mundo... (março de 2013)


LEGUME DEPENDENTE

www.flicker.com
Sempre achei que a “dieta dos pontos” – aquela em que a vítima conta e soma as calorias ingeridas ao longo do dia – era uma saída inteligente para o problema crônico de excesso de peso. Afinal, em tese, você pode comer de tudo, desde que não ultrapasse “aquele” ultrajante total de calorias definido por especialistas.


Aí, começam os problemas. Ingerir uma dose generosa de destilado o faz sentir autor de crime hediondo. O total de calorias nela contido equivale a uns três repolhos, no mínimo, ou a não sei quantas abobrinhas etc. Com a barriga roncando, você deixa a alegria de lado e opta pelo refogado. Quando você se dá conta, verduras e legumes passaram a ser sua razão de viver. 

Vida besta.

O LADO BOM DA DIETA

Repolho: este é o "cara"
Sempre tive, por assim dizer, os nervos arruinados. Mas eles pioraram muito nos últimos dias. E a causa principal de minha ruína nervosa não são os parcos recursos que pingam sem nenhuma responsabilidade fiscal em minha conta corrente. Já me acostumei com isso, sou um estoico. 

O que me aflige é saber que pratos de repolho me esperam no almoço, no jantar, nos dias úteis, nos sábados, domingos e feriados: repolho refogado, repolho em forma de salada; repolho verde, repolho roxo. Repolho para dar e vender.


Há 35 dias, ele tem sido o alicerce de minha dieta forçada. 

A única vantagem é que, sabedores do cardápio que tenho seguido à risca, vizinhos inoportunos já não me
importunam mais. Por razões óbvias.

A MELHOR DIETA...

É a que não precisa ser feita.

VIDA DE PAXÁ

E o vagabundo assumido rezava todas as noites:


-- Obrigado, Senhor, por mais este dia. Mais um em que nada fiz – e de nada fui privado. Que assim seja para sempre. Amém. 

CADÊ O POSTER?


No bar da Arminda, o pau ameaçou comer solto. Boca Dura encarou Chico Vaselina. E rasgou o verbo, daquele jeito que só ele e mais uns poucos conseguem rasgar:

-- Vaselina, você é um baita mentiroso.

-- Mentiroso por quê? – quis saber o acusado, com seus modos maneiros. 

-- Porque você fica com essa conversa fiada de que sua sogra era isso, sua sogra era aquilo outro, que mulher como ela é raro encontrar e não sei o quê mais. Ninguém, meu caro, ama a sogra, muito menos do jeito que você diz que ama. Ninguém!

-- Amava, amava! Mas, ela morreu – impacientou-se, coisa rara, Chico Vaselina.

-- Que ela morreu, eu sei, todo mundo sabe. O que eu não sei e ninguém sabe é por que você ainda não colocou uma foto dela na sala de sua casa. Cadê o pôster, mano? Que amor é esse? .

A conversa não degringolou de vez, porque dona Arminda interveio, com a autoridade de sempre. Meia hora depois, a conversa já era outra. A disputa era para saber quem conhecia melhor a filha do meio do açougueiro. Chico Vaselina sustentava a tese de que jamais soube o açougueiro tinha uma filha do meio. (abril de 2013)


AÇÃO E REAÇÃO

Odeio pernilongos. Mas eles não precisavam me jurar de morte.


GORDUCHOS: A CULPA É NOSSA!

Ilustração: Bruno Costa
cuidadocomasaude.com
Que a caça aos gorduchos passou dos limites, nem um magro intelectualmente honesto pode negar. Há tempos, nós, os mais fofos, passamos a ser uma espécie de praga universal, peste a ser erradicada. Somos responsáveis por toda e qualquer desgraça – do efeito estufa à alta do preço do tomate, do rombo da Previdência à precariedade do Sistema Único de Saúde, da situação calamitosa das calçadas à lentidão das filas. E o que é pior: não há uma mísera ONG que nos defenda.

Um amigo meu – gorducho – foi acusado de provocar acidentes de trânsito.

-- Eu? Não tenho carro. Nem dirigir eu sei. Só atravesso na faixa de pedestres, respeito todos os sinais – tentou se explicar. Em vão. Seu acusador devolveu de primeira:

-- Eu sei, eu sei. Mas, de que adianta tanta prudência? Um corpanzil desses, chupando sorvete e caminhando livre, pesado e solto pelas calçadas, desvia a atenção de quem dirige. Só uma foca amestrada, como você, não sabe disso.

Há coisas piores, bem piores.

Dias atrás, um conhecido postou no FB uma mensagem em que justificava as razões pelas quais rompera a relação de amizade com um cliente. O homem, segundo ele, é dado a contar piadas bestas, do tipo:

-- Mulher gorda e pantufas a gente só usa em casa.

Que animal! O conhecido fez bem em romper com a anta, que é quase um obeso mórbido. Ou seja: nem os gordos se respeitam mais. Riem de si próprios. Aonde vamos parar?

Enquanto os magros riem dos gordos e os gordos riem deles próprios, a ganância mostra suas garras. Bem feito, bem feito. Desunidos, não chegaremos a lugar algum que preste. Leio nas folhas que uma companhia aérea do Pacífico Sul, não contente em pesar as malas, obriga o passageiro a subir na balança. Quanto maior o peso da bagagem e, principalmente, do viajante, mais cara a passagem. Não está longe o dia em que funcionários das companhias aéreas dirão aos mais pesados:

-- Por favor, se dirijam ao setor de cargas. Esta balança aqui, para pessoas normais, não dá conta da massa corporal de gente como vocês.

Que barbaridade.

Então, fiquemos assim: a melhor dieta é a que não precisa ser feita. (OS - 2013)

FARPAS

-- Parabéns. Até que enfim, gostei de “um” trabalho seu.

-- Obrigado. Não tenho, ao contrário de você, orgulho de errar sempre.  


TEMPOS MODERNOS

Hoje, não basta mais ir às ruas e protestar. Tem que ir às ruas e protestar – pelado ou com máscaras. 

TENDA DOS MILAGRES

-- Não quero menosprezar seu trabalho, pastor. Longe de mim cometer uma barbaridade dessas. Mas, se tivesse todo esse dinheiro que o senhor me pede, para que Jesus me cure, tinha ido ao médico. Quero minhas muletas de volta.


COISA DE VÂNDALOS


O cinismo é uma das principais ferramentas dos adeptos do pensamento dito politicamente correto. Fico espantado, quando vejo – ainda hoje – gente aplaudindo a ação criminosa dos membros do MST, porque supostamente lutam contra o agronegócio e pela reforma agrária. Nada lhes dá o direito de invadir propriedades alheias e destruir o que não lhes pertencem. Gostaria de saber dos solidários à causa, se gostariam que invadissem e depredassem um bem imóvel de sua propriedade ou de sua família, apenas porque eles têm uma “posição política”. Entendo: invasão de propriedade alheia é refresco.

Em nome da arte popular, do direito de expressar uma vocação artística inexistente e/ou de se manifestar contra tudo e todos, vândalos urbanos picham muros e fachadas que não lhe pertencem com a sem-cerimônia típica dos marginais. Quem lhes dá esse direito? Você, que prega compreensão e tolerância com os rebeldes sem causa, gostaria de ver sua propriedade emporcalhada, imediatamente após os pintores concluírem o serviço que lhe custou olhos, boca e nariz da cara? Agora, depredar a casa do outro não faz mal, não é? Acho o cúmulo que donos de imóveis tenham que apelar para placas, como a que está na foto acima.

Regras existem para ser cumpridas. É simples assim. E não há nisso nada de autoritário. (março/2013)


terça-feira, 22 de outubro de 2013

OLHA O PASSARINHO

Fotografia não é biografia: é parte dela. Um homem sempre é muito mais – ou muito menos – que um retrato. 

OFERTA E PROCURA

O carroceiro estava inconformado. E não escondia sua revolta de ninguém:

- R$ 1,20! R$ 1,20 o quilo da latinha! Um quilo é igual a 62 latas vazias. Não adianta por areia pra enganar. Os homens são espertos. Se for pego enganando, não vende mais ali e em lugar nenhum na redondeza. Esse negócio já foi bom. Cheguei a receber R$ 1,80 por quilo. Agora, o que dá dinheiro mesmo é juntar só o lacre da lata. Aquilo vale ouro. Se encher duas garrafas de Coca de dois litros e meio, o cara está boneca. Compra o que quiser. Compra até cadeira de roda.

- Cadeira de rodas?


- É mano. Estranha, não. A gente nunca sabe o dia de amanhã.

MAFALDA, A ENCRENQUEIRA


Irene, a neta predileta, aproveitou que estava a sós em casa com o Velho Marinheiro, nosso Lobo do Mar, e resolveu puxar dois dedos de prosa. Apesar das confusões recentes, ele parecia estar tranquilo. O dedão do pé estava em paz; o bicho de pé imaginário, também. Bom sinal.

-- Vovô: não vou mentir. Sempre achei que o senhor era o encrenqueiro da família. Não que não seja. Às vezes, me perguntava de onde minha avó tirava tanta paciência. Hoje, vejo que vovó também não é flor que se cheire. Anda insuportável. A gente não pode dizer nada que ela implica, diz que a gente não fala: berra. Parece que está com os nervos à flor da pele.

Nosso Lobo do Mar fitou o infinito, como se procurasse um porto seguro, uma ilha repleta de Iracema peladas. Esboçou um sorriso de sabedoria. E foi direto ao assunto:

-- A culpa é nossa, Irene. Nossa desgraça começou quando você e sua mãe a levaram nesse médico de ouvidos. Mafalda sempre foi meio surda, mas nunca gostou de usar aparelhos, e os que ela usou eram chinfrins. Achava besteira gastar dinheiro com isso. Há quarenta anos, eu grito, para que ela me ouça. Não sei como ainda não perdi a voz. Agora, tudo mudou. Dia desses, ela me disse que eu pigarreava alto demais. Mas a última pigarreada que dei foi na esquina de baixo, quando voltava da padaria. Esse amplificador é muito forte.

-- E o que nós vamos fazer agora? – quis saber a neta.

-- Não dá para diminuir o som desse treco?

-- Já está no mínimo, vovô.

-- O quê? Ainda dá pra aumentar o volume? Que Deus nos livre e guarde!

E o Velho Marinheiro voltou a buscar com os olhos miúdos o infinito. Coçou o dedão por alguns minutos e disparou:

-- É mais fácil Mafalda voltar ao seu estado natural, de ouvidos curtos, do que eu reaprender a falar baixo. Vou dar um sumiço na engenhoca. Ela perde tudo mesmo, vai achar que esqueceu em algum lugar. Depois, você vai e compra outro, mas igual ao antigo, de pouca potência.

-- Será que dá certo?

-- Vamos tentar. Faço tudo em nome da paz doméstica. E de meu amor por Mafalda. (setembro/2013)




POVINHO ORDINÁRIO

Foto: Agência CNT


No trânsito, é impossível saber quem é mais bronco: motoristas ou pedestres. Não ignoro que almas justiceiras, amigas dos pobres e indefesos, ante uma dúvida dessas, ficam assanhadas. “Absurdo! Ninguém respeita os pedestres!” Que se assanhem à vontade. Estou convencido de que uns e outros – motoristas e pedestres – são igualmente indecentes, para usar um termo leve como uma salada de alface. Outros e uns se merecem. Sei que há exceções, claro. Mas os politicamente corretos que façam sua defesa.

Hoje, estacionei o carro junto ao meio-fio numa praça bastante movimentada. Fiquei cerca de cinco minutos ali. Foi tempo mais que suficiente pra me convencer de que estamos na idade da pedra lascada. O sinal verde para veículos não intimidou os valentes, que atravessavam sem qualquer cerimônia a rua movimentada. Sobre a faixa de pedestres, com o sinal vermelho para eles. Entre os incautos, velhos que mal podiam dar o passo, gente de meia idade, crianças puxadas pela mãe, jovens e até babá (deduzi pela roupa branca) empurrando cadeira de rodas com um acidentado a bordo.

Dez minutos depois, a caminho de casa, me deparo com legião de estudantes, molecada de 13/14 anos, atravessando, em bando, fora da faixa e com o sinal aberto para os veículos uma avenida muito mais movimentada que a rua em que há pouco me encontrava. Com um agravante: ali, carros, motos, caminhões e ônibus trafegam nos dois sentidos.

Para educar essa gente – motoristas, motoqueiros, ciclistas e pedestres –, quantos séculos serão necessários? (março de 2013)


TEMPO DE DESPERTAR

Já fui muito festeiro, não sou mais. Se houvesse uma enquete para definir o mês mais chato do ano, cravaria, sem pestanejar: dezembro. É um porre de bebida ordinária. É pior que cuecas e sapatos apertados.  Não chega a aleijar, mas incomoda.

Os preços disparam e raramente se encontra nas lojas o que se procura. O trânsito consegue ficar infinitamente pior do que já é. O telefone não para: de asilos a creches, todos querem uma doação extra. Os funcionários do prédio esperam uma “caixinha gorda”, os balconistas da padaria também. O ajudante do açougueiro, o carteiro e os medidores de água, luz e gás não fogem à regra. Caracas: esta gente já não recebe o décimo-terceiro salário?

Não sei o que é pior: as festas de Natal ou as comemorações do dia 31. Todo mundo de olho no relógio. Afinal, meia-noite é a hora de abraçar com entusiasmo aquele parente que você paga para não ver ao longo do ano. Aquela felicidade forçada é de arrebentar corações pouco valentes, como o meu. Pior que isso, só o tal de “amigo oculto”. Perde-se muito tempo e dinheiro com essa bobagem. Em geral, você dá ao “amigo” o que ele abomina, e recebe algo que para nada lhe serve. É a lei da vida: aqui se faz e aqui se paga. Isso quando não ocorre de você dar um panetone para a tia e receber da tia um panetone, da mesma marca e tamanho. É patético.

Ah, temos os foguetórios, anunciando a chegada do novo ano. Todo mundo de boca aberta, olhando para o céu e dizendo em uníssono: “Que lindo!” Francamente. Que dizer, então, das simpatias? Calcinhas brancas para ter paz; amarelas para ter dinheiro. E por aí vai. Suponho que as devassas, por coerentes e pragmáticas, não usem calcinha alguma. 

Ainda bem que não há mal que sempre dure. Janeiro logo chega. É tempo de pôr em marcha tudo aquilo que, há duas décadas, em marcha prometemos pôr. Tempo de recomeçar – a contar os dias que faltam para dezembro próximo.




O QUE EU PENSO SOBRE ISSO?

Por pouco, muito pouco mesmo – como dizia aquele locutor esportivo –, a conversa entre o candidato e seu marqueteiro não termina em alteração.

-- Então, meu estrategista, o que eu penso sobre aquele assunto? – quis saber o candidato, com aquela impaciência típica de candidato, de gente que não pode perder tempo.

Ilustração: canaldonicolau.blospot.com
-- Vai dizer o que a maioria quer ouvir. Nada mais, nada menos – respondeu o assessor.

-- E o que, meu querido, a maioria quer ouvir?  

-- Ainda não sei.

-- Não é possível! Você ganha uma fortuna e não sabe me dizer o que eu penso sobre esse assunto! Nunca tive uma assessoria tão fraca.

-- Calma, calma, sem estresse. Mandei fazer uma pesquisa pra saber o que você vai pensar. Os resultados estão chegando. Até amanhã, na hora do almoço, tenho a resposta. Até lá, candidato,
fuja, dos repórteres. (março/2013)

EFEITO TOSTINES

 Eles são iguais a gente?/Foto: Agência Câmara
Políticos, em geral, gostam de dizer que o Parlamento é a cara da sociedade. Talvez seja uma maneira de aliviar suas culpas. Ou, melhor dizendo: talvez seja uma forma dissimulada de pôr os cidadãos contra a parede: “Se estivesse em meu lugar, faria o mesmo que eu faço. Ou faria pior ainda. Então, por que você me rejeita tanto?”

Durante muito tempo, me recusei a acreditar que o Parlamento fosse a “cara” da sociedade. “Não podemos ser tão feios, sujos e malvados como a maioria deles!”, me indignava. Hoje, já não tenho a mesma convicção. Tenho escrito uma série de textos curtos sobre isso. Em breve, estarão no blog que estou finalizando, sob a rubrica “A ética do cruz-credo”. Registro papos de bar e de família, comportamentos no trabalho, flagrantes do dia-a-dia. Conclusão: se falta – e falta – decoro no Olimpo; na planície, ele também não se destaca pela abundância.

O Parlamento é o que é por que a sociedade é assim, ou a sociedade é assim por que o Parlamento é o que é? Ninguém precisa ficar nervoso, não. Sei que há muita gente boa por aí, mas também sei que há gente boa por lá. A desgraça é que, por aqui e por lá, quem presta é minoria.


BODAS DE OURO

- Cadê meu chinelinho de quarto, meu bem?

- Não sei, não, querida. Vou procurá-lo.


QUE TEMPOS!

No passado, era assim: político com pretensões de ascender na carreira (e qual político não as têm?) contratava jornalista para “sair” na imprensa, divulgar seu trabalho e ideias etc. e tal. A concorrência era acirrada. Parlamentares de uma mesma bancada competiam entre si para ver quem saía mais e melhor na fita. Mesmo os medíocres, que sempre são a maioria, queriam porque queriam ter um assessor de imprensa. Partiam do equívoco de que assessores fazem chover. Hoje, não mais. Mudou tudo. Político contrata jornalista pra se esconder da imprensa. Ou para “gerenciar crises”, que não se cansam de provocar.

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SEJAMOS JUSTOS

Nem sempre é da operadora a culpa por seu telefone não tocar.

SANTÃO, 70

14h30. Domingo. Mafalda estava amuada que só. De ciúmes. E o Velho Marinheiro, tocado por três ucas e duas cervejas, nada mais que isso, entrou livre, leve e solto em casa. De volta do aniversário do amigo, grande Santos, que fazia 70 anos naquele dia da graça de Nosso Jesus Cristo. E foi direto ao assunto:

-- Mafalda, o que temos pra comer?

-- Você não comeu feijoada, no bar da Bendita?

-- Benedita, Mafalda. Comi. Mas sou educado. Peguei prato pequeno. Na casa dos outros não repito. Você sabe. Tenho fome.

-- Quem estava lá? – quis saber Mafalda, mais desconfiada que detetive de classificados.

-- Todo mundo, ora.

-- Ela estava lá?

-- Ela quem, mulher de Deus?

-- Deolinda.

-- Deolinda estava sim.

-- E daí?

-- Suas nádegas foram atração da festa. Não minto. O aniversariante passou quase batido.

-- Velho safado.

-- Safado por quê? Só admirei. Como os outros. (setembro/2013)